sexta-feira, 10 de julho de 2009

...e mais um capítulo...

Não tardaria e o manto da noite cobriria o horizonte com uma envolvência de mãe. As primeiras sombras apareceriam sorrateiras e imponentes, penduras de uma luz que anuncia o renascer da cidade para a noite, que traz a virilidade dos noctívagos e que dá a cada esquina uma cor tão tenebrosa quanto mágica dependendo do propósito e da coragem de cada olhar. Mas a cidade não passa de uma visão física e de uma densidade objectivamente conseguida pela própria humanidade. Não deixando de ser parte integrante de uma natureza bela que a cada um de nós pertence, vale a pena olhar mais longe, vale a pena contemplar a força, a dimensão e a beleza de tão genuína natureza, o mar. E ele surge no horizonte, cada vez mais brilhante, à medida que descemos ao seu encontro. É como se ele crescesse, segundo a segundo, bem na frente dos nossos olhos, subindo pelos nossos corpos um arrepio estranhamente familiar que nos toma por inteiro e nos faz soltar uma lágrima de emoção. A avenida estende-se até perder de vista e ao seu lado a praia de areia branca que intercala e contrasta com a imponência acidental dos penedos. Eles são a marca desta praia, são a prova de uma natureza viva, acolhendo tão estranhas formas biológicas e permitindo uma rara beleza paisagística. São a poltrona, por excelência, para o reencontro do nosso próprio Eu ou para um beijo romântico ou ainda para esboçar a frase da nossa vida! As palavras falham quando o sol nos ilude com o seu mergulho no mar. É intensamente romântico e os sentimentos brotam como uma fonte inesgotável de prazer que nos sacia e nos vicia.
-Anda, vamos ver o por do sol.
Dizia Isa com aquele brilho nos olhos e sorriso maturamente safado. Eram azuis, lindos e raros como rubis, e os cabelos longos de perfeitos caracóis que misturavam a profundidade do castanho com a espontaneidade do loiro e esvoaçavam ao sabor do vento. Esse mesmo vento maroto que não parava de provocar o seu vestidinho preto, leve, solto, divinal, que lhe dava um aspecto ousadamente feminino demarcando as suas formas. Estava feliz. Olharam-se nos olhos, deram as mãos, e adivinhando o pensamento do outro, correram pela areia da praia em direcção ao mar. De penedo em penedo lá foram subindo e entrando pelo mar adentro ate que seus olhos se perderam na dimensão do horizonte. Sentados lado a lado, inertes e silenciados pela intensidade do momento, ali ficaram até que o sol desapareceu deixando-os privadamente sós.
- Vê como é bela a natureza que mesmo perdendo o brilho do sol descobre a magia e o encanto da noite. - Dizia Isa sem tirar os olhos do leito do sol.
Ambos estavam sérios, inertes, como se cada palavra fosse um desejo profundamente ansiado. Não arriscavam sequer olharem-se, e cada um mergulhava nas profundezas do seu ser. Navegavam no seu mar e recordavam cada onda que tiveram de enfrentar para chegarem ate ao dia seguinte com o sorriso e a força invencível da juventude. Recordavam e transpunham para aquele momento um pouco da sua história e, cordialmente, da sua experiência.
- Em que pensas? – Perguntava Sérgio como que a desculpar-se do seu próprio silêncio.
- Sabes Sérgio, eu sempre comparei a vida a um grande oceano. Uma vezes tranquilo, outras agitado, outras envolvente de generosidade ou de malvadez, enfim, mas sempre com a certeza de que teremos a sua beleza no dia seguinte para voltarmos a descobrir novas sensações e desafios, nova motivação para caminhar.
Sérgio ouviu e deixou que seu olhar se perdesse na beleza daquele mar ao cair a noite. Aquilo que ouviu da boca de Isa fez-lhe subir um arrepio ate franzir o sobrolho. Sabia que Isa observava cada pestanejar seu, e que esperava dele uma reacção interior e filosoficamente ao seu estilo. Não porque lhe reconhecesse essa obrigação mas sim porque lhe sentiria essa necessidade.
- Eu sou como um barco que vês ao fundo, flutuo, por vezes meto água, temo as tempestades e tento não me aproximar demasiado dos extremos para não encalhar. Tento em cada uma das minhas rotas encontrar o equilíbrio entre as várias variáveis para que o percurso seja moderadamente racionalizado.
Em simultâneo, seus olhares procuraram-se, suas mãos uniram-se e seus lábios se fundiram. Sem uma palavra, e com um sorriso timidamente safado, olharam-se simplesmente. Tinha acontecido o primeiro beijo.

Era hora de jantar. Nada estava verbalmente planeado mas cada um sabia naturalmente da vontade do outro. A mente de cada um era como se fosse uma extensão do outro.
- Vamos jantar? - Perguntou Isa.
- Sim, vamos. - Respondeu Sérgio com a apreensão de quem experimenta uma bebida pela primeira vez.
Poderiam ficar ali a noite inteira que não sentiriam a necessidade fisiológica de se alimentarem. O momento alimentava-lhes a alma e camuflava as necessidades puramente físicas. Deram as mãos e, de penedo em penedo, lá foram descendo até à areia branca e fina da praia. O vento tocava o vestido solto e fazia os cabelos cobrirem o rosto feliz de Isa. Sentia-se leve e invulgarmente livre, de pés nus pela areia fria da praia, sandálias finas numa mão e a mão de Sérgio na outra mão, corriam pela praia emocionalmente satisfeitos por estarem juntos. Não era o grande momento das suas vidas mas, seguramente, era um dos grandes momentos. Não se conheciam há muito tempo mas parecia que muito tempo já tinha passado, muita coisa já tinham vivido e por isso sentiram rapidamente a confiança e a cumplicidade de uma velha amizade. Nunca houve encontro mas sim reencontro, era a sensação que tinham quando se olhavam nos olhos.
Sérgio era um homem maturamente jovem e responsavelmente adulto, e tinha em cada uma das suas abordagens o humor de adolescente mas o charme de trintão. Mas era, acima de tudo, um cavalheiro sensivelmente romântico, e Isa apreciava-o por isso.
Cansados e a arfar, mas sempre a sorrir, deixaram-se cair na passadeira de acesso ao passeio. Num acto espontâneo de sensualidade Sérgio pegou no pé de Isa e em movimentos carinhosamente pensados foi retirando um a um cada grão de areia, depois pegou na fina sandália de salto alto e calçou-a, milimetricamente. Sorriu, fez-lhe uma festinha no queixo, e repetiu o mesmo gesto com o outro pé.
Este instinto de ternura de Sérgio encantava Isa. Parecia que em cada movimento contemplava-a como quem venera um ente divinalmente perfeito. Dava-lhe segurança e poder, dava-lhe motivo para sorrir de felicidade. Era tudo tão espontâneo e natural mas ao mesmo tempo tão perfeito e subtilmente romântico que a deleitava.
O restaurante não era tipicamente de luxo nem era daqueles iluminados a meia-luz com velinhas estrategicamente colocadas. Era um lugar simples como ambos, e quis o acaso que, apesar da sua lotação, ao fundo uma mesinha os esperasse, um cantinho romântico onde bastava o olhar feliz e cúmplice de ambos para encherem de cor o momento. Partilharam os aperitivos, a suculenta vitela, o pezinho de salsa, o vinho tinto, partilharam palavras, sorrisos, olhares safados, discretas carícias, partilharam até os guardanapos que por descuido se trocaram, partilharam um beijo bem antes do sabor do café.
Como que por magia Sérgio fez surgir, entre seus rostos, um lindo botão de rosa vermelho arrancando de Isa um atribulado sorriso de admiração pelo truque. Isa tocou com o seu indicador direito o queixo de Sérgio, contemplou o vermelho vivo e descobriu na beleza da rosa o significado de tal gesto. Sérgio era de facto um homem detalhadamente romântico.
Tinha aproveitado o momento em que Isa se ausentou ao WC para comprar, a um africano de pele escura e agastada pelo sol, a rosa mais perfeita que trazia no seu regaço. De sorriso forçado e a suplicar pelo seu negócio ia percorrendo as mesas sugerindo uma rosa para a esposa ou para a donzela do lado, impingindo até em desespero de causa mas sem sucesso. Parecia que todos se confinavam ao prazer físico em detrimento da satisfação da alma e da sua sede de amar. Todos menos Sérgio. Com devoção, colocou cuidadosamente a rosa no seu colo esperou que chegasse o momento certo para brilhar.
Ambos tocaram a rosa, cheiraram o seu perfume e sorriram, era como se aquelas pétalas simbolizassem a beleza sentimental daquele momento.
- Minha namorada? – Perguntou Sérgio decidido e confiante olhando Isa nos olhos e procurando suas mãos.
- Sim doido! Tua namorada!

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